Sobre tomates e tornar-se
A filosofia alimentar de um avô mediando a transformação de uma chata para comer em cozinheira.
Me surpreende hoje em dia a lembrança de que eu fui uma criança… como posso dizer… conservadora nos costumes alimentares. A famosa chata para comer. Logo eu, a menina serelepe, que puxava conversa com todo mundo na rua, subia em qualquer árvore disponível, se jogava em qualquer brinquedo do parque de diversão. Que se pudesse, aboliria a caminhada para poder se mover no mundo dando estrelinhas. À frente de um prato de comida, eu encruava, para o desprazer da minha mãe, que além de muito preocupada com a nutrição dos filhos, sempre foi uma cozinheira de mão cheia.
Um dia, eu-menina decidi que seria uma purista das massas (do macarrão ao pastel) que só as consumiria sem nenhum tipo de acompanhamento. Não gostava de molho de nenhuma natureza e nutria um desgosto especial contra o molho de tomate. Meu macarrão seria o que acaba de ser tirado da água fervente, com no máximo uma quantidade imperceptível de manteiga. O maior sacrifício na época foi abrir mão do pastel de palmito, mas a ativista da massa pura precisava manter meus princípios, então o pastel de vento virou o meu pedido.
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Seu Sylvio, meu avô, era um camarada das coisas simples. Gostava de assistir futebol na TV, tomar uma taça de vinho aos fins de semana, observar o movimento no centro da cidade. Como não há luz sem sombra, ele também tinha desgostos: seus alvos favoritos eram novela, revista Veja e pessoas que tratam bichinho de estimação como gente. Na cozinha, ele era a figura da organização, cozinhava lavando a louça para que na hora de sentar para a refeição, comer fosse sua única preocupação. Ele passava um café como ninguém e sua produção culinária autoral era o molho de tomate. Simples, bem feito.
E quando eu digo simples, não se deixe enganar, não tem nada de fácil, rápido ou instantâneo. O tomate em lata é uma dádiva da indústria alimentícia para o cozinheiro moderno, mas para o Sylvio não era nada além de um truque. O simples dessa receita está nos ingredientes - bons tomates e tempo. E Sylvio era o profeta que conduzia esse ritual de transformação.
Tudo começava com uma peregrinação até o Mercado Municipal de Campinas, para comprar tomates frescos, em quantidade, por um preço mais em conta. Meu pai acompanhava, como o motorista da vez todas as vezes, mas sua agência terminava no virar de chaves para desligar o carro. Era Sylvio que escolhia os tomates, puxando assunto com estranhos, reclamando disso e daquilo.
De volta ao Jardim Eulina, o profeta se dobrava no meticuloso, repetitivo, e tedioso trabalho de higienizar e cortar os muitos quilos de tomate. Lava, corta ao meio, põe no caldeirão. Repete. Até acabar. As ervas frescas, colhidas do quintal ou compradas, coroavam a montanha de tomates e o caldeirão ia pro fogo baixo, como sempre. Ambos os meus avós demonstram sua devoção a essa força da natureza em forma da sabedoria popular: sabor se constrói devagarinho, no fogo baixo. A ideia de que o tempo é, sim, muito valioso e deve ser investido nas coisas certas.
Caldeirão tampado quase completamente, deixando um espacinho para o vapor sair e a redução começar. O jogo da espera começa, mas nem por isso é hora de cruzar os braços. A tábua, as facas, o escorredor - louça nenhuma vai se lavar sozinha. Lava, coloca no escorredor, seca com pano de prato, guarda. Repete, até acabar. Dá uma olhada no caldeirão, mexe, se necessário. Se sobrar tempo, a garagem precisa ser varrida, e tem sempre uma roupa para estender na máquina.
Quando os tomates estiverem desmanchando e reduzidos a uns três quartos, é hora de peneirar. O caldeirão sai do fogão para a bancada da pia, acompanhado de uma segunda panela grande, com uma peneira bem fina em cima. De concha em concha, os tomates cozidos vão sendo transferidos para a peneira e empurrados através dela com uma espátula dedicada tão somente a essa parte do ritual. Passa a polpa, o sabor, o suco, ficam as sementes e a pele.
A nova panela é levada ao fogo baixo novamente, para uma segunda redução. A louça da peneiragem é lavada, talvez seja o momento para uma xícara de café. De tempos em tempos, uma mexida com escumadeira. Só quando os tomates amassados se reduzem pela metade é que ganham o título de molho. Ajuste no tempero, sal, pimenta, e está pronta a oferenda.
O ritual todo só se fecha na mesa. Normalmente dias, semanas após o preparo do molho. Ele vai para a mesa com uma massa, com as famosas porpetas, com uma panquequinha, sem alarde ou grande cerimônia. Mas vai também para potinhos de margarina reutilizados para congelar, podendo ser distribuído para que filhos, netos, vizinhos comam em suas casas, a suas conveniências.
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É verão em Chicago em 2021 e, após um longo inverno pandêmico, a vida parece maior que tudo. Já chamo Chicago de casa há 2 anos, mas dado que boa parte desse tempo estávamos quarentenados, andar pela cidade me traz à tona uma paixão quase adolescente. Estou indo para meu novo trabalho, marco de uma mudança brusca de carreira. Do escritório para a cozinha de uma ONG.
Chego lá, com o entusiasmo da novidade, e me deparo com caixas e caixas de tomates vindos da horta da ONG, colhidos naquela manhã. Para uma região que passa tantos meses coberta por neve, frio, e um domo cinzento, a abundância fugaz do verão é celebrada com intensidade. E a temporada de tomates é um ótimo exemplo disso. Se você esperar demais, ela te escapa pelos dedos.
Minha missão naquele dia, e vários outros dias depois desse, era processar os tomates. Consumi-los todos de uma vez não faria o menor sentido, nem alimentando por volta de 100 pessoas por dia. É necessário preservar parte dessa colheita para os meses de frio e escassez. Uma caixa de cada vez, lavar, cortar, pesar, assar, resfriar, congelar. No movimento repetitivo desse processo, mesmo tão longe de Campinas, tão longe de Sylvio, que faleceu no final de 2019, me vi de volta na cozinha dos meus avós.
Eu já não era mais a menina espevitada, que ia e vinha da cozinha, uma espectadora do ritual, cuja preciosidade me escapava naquele momento. Se há muito já havia abandonado as certezas inegociáveis da infância e me convertido novamente às maravilhas de um bom molho de tomate, agora assumia um papel ativo na sua produção.
Me veio à cabeça uma das canções do álbum Amarelo, do Emicida - álbum que carrega para mim a dor e amor do luto ao perder alguém de longe - “quem divide o que tem é que vive para sempre." A cada tomate lavado, cortado, assado, eu era, cada vez mais, a parte do Sylvio que vive em mim.
Hoje, 28 de janeiro, é aniversário do Sylvio. Falo que é porque, mesmo já não estando fisicamente aqui, meu avô segue sendo uma presença enorme na minha vida. Ele me ensinou a usar a página do caderno até a última linha e a pegar ônibus. Sua voz de radialista ecoa no meu coração toda vez que ouço alguém dizer “Salve!”. Sabia que queria começar a news com esse texto sobre ele e os tomates, então fazê-lo no seu dia era a decisão mais lógica.
Seguindo no bonde da memória, deixo de dica do mês uma música que me lembra o Sylvio e a minha infância, que não seria a mesma sem ele.
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que lindo, Ana!
Lindo, Saudade.