O restaurante mais marcante da minha memória de infância é a Macarronada Italiana. É um restaurante bem tradicional da cidade onde nasci, Campinas. Toalha branca, guardanapo de pano, equipe de garçons com gravata borboleta. Como o nome deixa claro, a comida servida é o que conhecemos como comida italiana - massas, pizza, alguns pratos de carne, como o famoso parmegiana. Mas também coisas bem típicas do paladar brasileiro - um bom croquete, um pastelzinho de lamber os beiços, uma salada de palmito que era um desbunde.
Ir à Macarronada era um evento porque sair pra comer era um evento. Ocasião de comemoração, aniversários, feriados, algo assim. Ao longo dos anos, eles foram se adaptando a outros modelos de negócio. Implementaram um buffet self-service, pedidos para levar pra casa, aplicativo de delivery, e até uma linha de congelados. Mas para mim, nada supera a pompa e circunstância de comer naquele salão. A refeição sempre começava com um pão caseiro, molhado numa mistura de azeite e queijo ralado. Cada pessoa da minha família tinha seu prato favorito. Para meu irmão, era frango parmegiana, para meu pai, a lasanha quatro queijos. Para minha mãe, era o macarrão parisiense - esse é um dos pratos que faço aqui quando bate a saudade de casa, minha versão adaptada está no fim da news aqui. As porções eram generosas, e vinham servidas em bandejas ou panelinhas de alumínio, pelando de quente. De acordo com juízo próprio ou a partir de instruções do cliente, os garçons serviam uma quantidade nos pratos individuais, passando na mesa, de tempos em tempos, para conferir se alguém queria mais, ou para embalar o resto pra viagem.
Apesar de todas essas memórias boas na Macarronada, a real é que restaurantes me inspiram sentimentos contraditórios, são um campo de conflito. São lugares que desejo estar, um rolê que adoro fazer, mas que me geram desconforto. Rola uma sensação de inadequação que às vezes passa pelo pessoal - a caipira em mim, que não domina por completo seu papel dentro daquele espaço -, mas também pelo que restaurantes representam dentro do nosso contexto social. É um espaço complicado, repleto de dinâmicas de poder desiguais, que abriga diferentes expectativas. Que pode ser uma expressão cultural, um espaço de comunidade, um convite para o novo. E, ao mesmo tempo, um marcador de status, um espaço de exploração, de subserviência, de perpetuação de injustiças.
A chef e autora escocesa Pam Brunton descreve esse trançado confuso e complexo do seu ponto de vista no livro Between Two Waters. Ela está narrando as aventuras e desventuras do processo de abrir Iver, seu restaurante em Loch Fyne:
“Isso que é interessante sobre restaurantes como o nosso. Eles são espaços intermediários entre o privado e o público. Alguém é o dono do estabelecimento, alguém tomou as decisões sobre o design e o gosto pessoal de alguém moldou o que está sendo servido no menu. Restaurantes não são essenciais para o cotidiano tal qual o refeitório do trabalho, da escola, ou da penitenciária. Você não é obrigado a frequentar um restaurante do qual não gosta! Mas os patronos de um restaurante pagam por uma experiência, e se sentem no direito de julgar se vale o preço que custa ou não. Parte desse preço inclui a decoração, alguém sorrindo na porta de entrada, e se as palavras presentes no menu batem com suas ideias pessoais do que deve ser servido em um lugar como aquele, naquele momento. (...) Nós estávamos convidando o público pra dentro da nossa casa, para ser parte das nossas mais profundas esperanças e dos nossos sonhos mais vívidos. E isso era assustador.”
Eu nunca trabalhei em um restaurante. Inclusive quando decidi me aventurar a trabalhar com comida, escolhi o outro tipo de estabelecimento que ela cita acima, o lugar institucional. Algumas razões eram pessoais, de estilo de vida. Eu sabia que não queria trabalhar à noite ou durante finais de semana, os momentos em que meu círculo social se encontra. Também tinha uma questão de acessibilidade. Eu queria que a comida gerada pelo meu trabalho tivesse o mínimo de barreiras para chegar nas pessoas, queria alimentar o maior número de pessoas possível. Para justificar internamente a minha transição de carreira para mim mesma, isso precisava ser central e não uma noite com descontos especiais para o pessoal do bairro, ou um projeto paralelo. Também era importante que esse trabalho com comida fosse parte de um ecossistema de produção local. E foi assim que eu fui parar em uma cozinha de um youth center, que tinha uma horta urbana de alta produção. Fazer comida, com ingredientes frescos e locais, servir, e ensinar elementos básicos da cozinha para uma molecada de 13-18 anos foi uma jornada de muito aprendizado e desenvolvimento, pessoal e profissional. Mas eu divago.
De volta à Pam Brunton. Eu consigo sentir e me empatizar com o medo que a chef está descrevendo ao refletir sobre o momento de concepção do seu restaurante. É uma janela interessante para o outro lado do espelho que encaro como uma pessoa que vai a restaurantes. Eu quero ser uma boa convidada e tratar com respeito os sonhos e esperanças das pessoas que idealizaram os estabelecimentos que escolho frequentar. Mas também aprendi a analisar o que estou disposta a pagar e que tipo de experiência vai ser satisfatória para mim.
Sair para comer sempre foi caro. Tem o preço de tanta coisa refletido naqueles itens do menu - ingredientes, salário de funcionários, conta de luz e água, aluguel, equipamento, profissionais especializados, etc. Quando como fora, eu quero saciar meu apetite físico, mas também meu paladar pensante. Quero uma refeição que mate a fome de comida e de cultura. Quero aprender algo novo sobre as sensações que diferentes combinações de ingredientes podem gerar e também sobre o que elas querem dizer sobre as comunidades de onde elas vêm. Quero comer comida de gente, feita por gente, para gente. Quero me conectar com a humanidade de um jeito diferente, e a comida tem esse poder transcendente.

No meu orçamento, prefiro incluir um restaurante que é transparente sobre a origem dos ingredientes que usa e sobre a maneira como trata seus funcionários do que um restaurante que investe super pesado em técnicas mirabolantes e ingredientes super raros. Não porque essas duas categorias sejam mutuamente excludentes - é possível fazer gastronomia molecular com caviar de primeira, ser transparente sobre isso e tratar bem seus funcionários. Mas no fim das contas, eu, enquanto consumidora, não estou disposta a pagar o valor que isso custa, até porque a experiência que eu prefiro não precisa de tantos truques.
Chicago é a casa do restaurante Alinea, um dos mais renomados restaurantes de gastronomia molecular, reconhecido internacionalmente por sua criatividade e inovação. Quando nos mudamos pra cá, eu pensei em economizar meu suado dinheirinho para um dia ir ao Alinea, quem sabe. Mas ao longo da minha trajetória pessoal como curiosa gastronômica, me dei conta de que preferia investir em estar com mais frequência em outros tipos de restaurantes e provar comidas de diferentes culturas. Sorte minha estar em uma cidade com uma cena gastronômica incrível, que me permitiu provar comida indiana, etíope, ítalo-croata, vietnamita, senegalense, filipina, entre outras. Alguns mais chiques que outros, uns mais caros que outros. Todos me deixaram de barriga e cabeça cheia - como um prato de comida pode nos ensinar, nos fazer sentir, expandir nossos horizontes!

Me enche de esperança ver chefs trabalhando duro para produzir uma comida interessante, culturalmente relevante, e também tentando construir um modelo de negócio mais igualitário e justo para seus funcionários - chefs como Norma Listman e Sabiq Keval, do Masala y Maiz, na Cidade do México. Apesar de não ter conseguido visitar o restaurante em minha viagem até lá em 2023, conheci melhor o projeto deles através de um episódio do podcast Esculent. O restaurante se propõe a mesclar tradições culinárias mexicanas e indianas, locais de origem dos chefs. Um conceito interessantíssimo em si é elevado de patamar com a disposição dos chefs a uma transparência radical. O restaurante tem horários de funcionamento reduzidos para dar suporte a uma política de equilíbrio entre a vida profissional e pessoal dos funcionários, que têm voz ativa não só em decisões internas do restaurante, como podem moldar sua atuação ali de acordo com o plano de carreira que tenham em mente. Sustentabilidade permeia também a escolha dos ingredientes, buscando a relevância cultural, mas tendo o impacto ambiental sempre em pauta. O salão tem datas e preços especiais para mexicanos, como uma maneira de mitigar os impactos da gentrificação que a Cidade do México tem experimentado nos últimos anos, e se mantendo conectado com a população local que a cozinha também busca representar.
No fim das contas, eu acho que restaurantes nunca vão ser um local desprovido de conflitos e tensões. Um lugar de plena harmonia, em que eu me sinta completamente à vontade. Talvez a simples busca, o tentar encontrar seja motivo suficiente para seguirmos ouvindo os instintos dos nossos apetites e investindo em estabelecimentos que se dispõem a melhorar sempre - no sabor, no tratamento dos funcionários, na criação de uma cadeia de produção mais justa e sustentável para as pessoas e para o ambiente.
Hesitei muito em compartilhar receitas nesse espaço, mas dessa vez não resisti - fica de dica do mês:
MINHA VERSÃO DO PARISIENSE DA MACARRONADA
Metade de um pacote de macarrão longo, cozido al dente de acordo com as instruções do pacote
3-4 fatias de bacon, em cubinhos
½ cebola, em cubinhos
2-3 dentes de alho, amassados
2 colheres de sopa de manteiga
2 ½ colheres de sopa de farinha de trigo
2-2 ½ xícaras de leite
Sal e pimenta do reino, a gosto
Uma pitada de noz moscada
¾ xícara de ervilhas congeladas
Parmesão ralado na hora, para finalizar
Cozinhe o macarrão de acordo com as instruções do pacote até o ponto al dente e reserve um pouco da água do cozimento para a finalização do prato. Enquanto isso, comece fritando o bacon em fogo médio, em uma panela média, que será usada para fazer o molho. A minha preferência é por um bacon bem fritinho, crocante. Uma vez que o bacon chegue no ponto que você curte, remova os pedacinhos de carne da panela com uma escumadeira e reserve. Refogue a cebola e o alho na gordura do bacon que ficou na panela, até que a cebola fique translúcida e sua casa toda se inunde do perfume que enche a alma de ternura de comida sendo preparada.
Adicione a manteiga e espere derreter por completo. Com ajuda de um fuê, adicione a farinha aos poucos, mexendo constantemente para incorporar. A mistura de farinha e gordura precisa cozinhar por alguns minutos - seus melhores parâmetros de avaliação aqui são a cor e o cheiro. Precisa ter uma cor caramelo claro e um cheiro amendoado, quase doce, e está na hora de adicionar o leite. Incorpore o leite aos poucos também, sempre mexendo com o fuê.
Agora é uma questão de esperar a mistura pegar fervura, que é o que vai levar o molho a espessar. Tempere com sal, pimenta do reino e noz moscada, tendo em mente que você ainda vai adicionar outros ingredientes.
Uma vez que o molho engrosse, adicione a ervilha e o bacon fritinho. Siga mexendo e avaliando a textura - se o molho ficar muito espesso, adicione um pouco da água de cozimento do macarrão para soltar um pouco a textura. Quando as ervilhas estiverem aquecidas, experimente e ajuste o tempero se necessário. Sirva o macarrão com o molho imediatamente, cobertos por uma camada de parmesão ralado - a quantidade depende do freguês. Eu aconselho seguir a quantidade que te faça feliz naquele dia.
Aparencia, aroma e sabor deliciosos... obrigado!